Desde a proclamação da independência, Moçambique foi
conhecendo realidades sócio-económicas e político-militares diferentes. Tal facto
influenciou bastante o tratamento dispensado pelo legislador moçambicano à
matéria relativa aos direitos fundamentais. No presente artigo, faremos uma
análise sucinta da evolução constitucional no país, demonstrando que o direito fundamental
à objecção de consciência nem sempre foi uma realidade em Moçambique.
A independência
nacional foi proclamada em 25 de Junho de 1975, momento em que entrou em vigor
a Constituição da República Popular de Moçambique (“Constituição de 1975”). No
seu preâmbulo, a Constituição de 1975 declarou ser um Estado de Democracia
Popular, tendo a Frelimo papel dirigente
e orientador da política básica do Estado. De facto, tratava-se de um Estado
cujo regime político era socialista e a economia era marcadamente
intervencionista. O sistema político era caracterizado pela existência de um
partido único e a Frelimo assumia o papel
de dirigente. Eram abundantes as fórmulas ideológicas - proclamatórias e de
apelo das massas, compressão acentuada das liberdades públicas em moldes
autoritários[1].
Numa análise à Constituição de 1975, nota-se que a consagração dos direitos
fundamentais dos cidadãos tinha em vista o seu gozo no âmbito da colectividade
e de acordo com as aspirações político-revolucionárias da época. Tratava-se de
uma época peculiar, que se exacerbou com a proclamação de Moçambique como um
Estado de orientação marxista-leninista em 1977[2].
Note-se que no contexto dos partidos marxistas-leninistas, os direitos
individuais são relegados em função dos direitos da colectividade. Assim, neste
contexto, o direito à objecção de consciência - um direito de carácter
marcadamente individual – dificilmente poderia ser consagrado na ordem jurídica
moçambicana.
Entretanto,
em 30 de Novembro de 1990, entrou em vigor outra Constituição (“Constituição de
1990”). Na Constituição de 1990, o catálogo dos direitos, deveres e liberdades
dos cidadãos foi ampliado. No seu preâmbulo, a Constituição de 1990 destacou o
seguinte: “Nós o povo moçambicano…dentro
de um espírito de responsabilidade e pluralismo de opinião, decidimos organizar
a sociedade de tal forma que a vontade dos cidadãos seja o valor maior da nossa
soberania.” Nesta fase, podemos notar que a Constituição de 1990 consagrou
as liberdades e os direitos fundamentais num âmbito individual, ou seja, os
direitos individuais passaram a ter maior relevância. Esta percepção é
reforçada pelo facto de a Constituição de 1990 ter estabelecido, no seu artigo
1.º, que Moçambique passava a ser um Estado Democrático e de Justiça Social.
Também, nas alíneas d) e e), do artigo 6.º, a Constituição de 1990 determinou que,
a defesa e promoção dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a
lei, o reforço da democracia, liberdade e da estabilidade social e individual
constituíam, dentre outros, objectivos fundamentais da República de Moçambique.
No entanto, ao fazermos
uma análise mais atenta aos direitos fundamentais consagrados na Constituição
de 1990, não vemos nenhuma alusão expressa ao direito à objecção de consciência.
Portanto, apesar da ampliação do catálogo dos direitos fundamentais no âmbito
da Constituição de 1990, o direito à objecção de consciência ainda não era uma
realidade em Moçambique, não obstante as revisões pontuais a que a mesma foi
sujeita em 1992, 1996 e 1998[3].
Todavia, é no âmbito da
Constituição da República, actualmente em vigor, aprovada por aclamação pela
Assembleia da República, em 16 de Novembro de 2004 (“Constituição de 2004”),
que vamos notar avanços significativos nesta matéria. Alguns anos após a
entrada em vigor da Constituição de 1990, viu-se a necessidade de se fazer uma
revisão global da mesma, tendo em vista conforma-la com a dinâmica e evolução
política e socioeconómica do país[4].
Para tal foi criada uma Comissão Ad-hoc,
através da Resolução n.º 25/95, de 13 de Outubro. Durante os trabalhos
preparatórios desenvolvidos no âmbito do processo de revisão, surgiram algumas
questões que não colheram consenso, sendo uma delas a que se referia a
consagração constitucional do direito à objecção de consciência[5].
Entretanto, apesar de ter havido correntes discordantes, o direito à objecção
de consciência acabou sendo incluído no texto constitucional. Esta é deveras
uma das grandes inovações, uma vez que, de forma expressa, confere aos cidadãos
a faculdade de invocar um direito fundamental essencial para a protecção das
suas convicções e consciência. Na verdade, conforme vem disposto no seu Preâmbulo,
a Constituição de 2004 “...reafirma, desenvolve e aprofunda os
princípios fundamentais do Estado moçambicano, baseado no pluralismo de
expressão, organização partidária e no respeito e garantia dos direitos e
liberdades fundamentais dos cidadãos”. – O sublinhado é nosso.
Portanto, no âmbito da
evolução constitucional em Moçambique, é finalmente no n.º 5, do artigo 54.º, da
Constituição de 2004, que o direito fundamental à objecção de consciência tornou-se
uma realidade em Moçambique.
Porém, apesar de o
direito à objecção de consciência estar constitucionalmente consagrado, ainda
se coloca a questão da sua exequibilidade. Note-se que o n.º 5, do artigo 54.º,
da Constituição de 2004, estabelece que “É
garantido o direito à objecção de consciência nos termos da lei.” –
O sublinhado é nosso. Deste preceito constitucional, extrai-se que a objecção
de consciência é um direito sob reserva de lei. Infelizmente, no caso de
Moçambique, esta matéria não é abordada na legislação ordinária. Estamos assim,
perante um vazio legal, que pode conduzir à incerteza jurídica nos casos em que
os cidadãos pretendam fazer valer este direito[6].
De modo que, levantam-se algumas questões: Que
procedimentos deverão ser seguidos caso um cidadão invoque o direito à objecção
de consciência? Será que o reconhecimento do estatuto de objector de
consciência seguirá o regime judicial ou poderá ser feito através de um
procedimento administrativo? Caso se opte pelo procedimento administrativo, que
órgãos da Administração Pública deverão conhecer dos casos de reconhecimento do
estatuto de objector de consciência? Ora, as questões aqui levantadas não
encontram resposta pelo facto de não existir um instrumento legal relativo a
esta matéria, tornando o n.º 5, do artigo 54.º, da Constituição de 2004, um
preceito constitucional meramente cosmético.
Importa frisar que, a inexistência de leis que garantam o
direito à objecção de consciência, contraria os tratados internacionais sobre
direitos humanos, ratificados por Moçambique. Só para citar um exemplo, o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos[7],
dispõe no seu preâmbulo que “o ideal do
ser humano livre, usufruindo das liberdades civis e políticas e liberto do medo
e da miséria, não pode ser realizado a menos que sejam criadas condições que
permitam a cada um gozar dos seus direitos económicos, sociais e culturais.”
Nesta perspectiva, defendemos veementemente a consagração
dos direitos fundamentais, para o efectivo benefício dos cidadãos e não apenas
para ornamentar a Constituição. Sim, torna-se
relevante que o legislador moçambicano se posicione e garanta o gozo do direito
à objecção de consciência. Em nossa opinião, é imprescindível
a aprovação de uma Lei da Objecção de Consciência, que preveja mecanismos para
o reconhecimento do estatuto do objector de consciência. Achamos que essa seria
uma resposta oportuna e eficaz às questões levantadas no presente artigo e,
acima de tudo, tornaria exequível o n.º 5, do artigo 54.º, da Constituição de
2004, garantindo plenamente o direito fundamental à objecção de consciência em
Moçambique.
Augusto Chivangue
Advogado
[1] SAL & Caldeira Advogados e Consultores,
Lda., Evolução Constitucional na República
de Moçambique, pág. 1, disponível em: http://www.salcaldeira.com/index.php/pt/publicacoes/artigos?start=20, acedido em 13 de Dezembro de 2016.
[2] Serra,
Carlos Manuel, Estado, Pluralismo
Jurídico e Recursos Naturais – Avanços e recuos na construção do Direito
Moçambicano, Escolar Editora, Lisboa, 2014, pág. 212.
[3] Note-se que em nenhuma das referidas
revisões se fez alusão a inclusão do direito à objecção de consciência no catálogo
dos direitos fundamentais.
[4] Tem sido pacífica a concepção de que a Constituição
de 2004, constitui uma continuação da Constituição de 1990. Na obra Evolução Constitucional da Pátria Amada,
publicada pelo Instituto de Apoio à Governação e
Desenvolvimento, Maputo, Fevereiro de 2009, pág. 10, defende-se
que “A passagem da Constituição de 1975 a
de 1990 constitui verdadeiramente, na terminologia “Mirandiana”, uma “transição constitucional”,
isto é, um processo que culmina com a emergência de uma nova Constituição (…).
A reforma constitucional de 2004 tem uma natureza diferente. Ela constitui uma
revisão constitucional strictu sensu no sentido de que traduz uma continuidade
institucional e tem por objectivo uma “auto-renegação” do texto
constitucional inicial.” – O sublinhado é nosso.
[5] Na parte referente a liberdade de
consciência, o Guião de Apresentação do Anteprojecto de Revisão da
Constituição, da Assembleia da República, edição de 1998, pág. 9, debruça-se
nos seguintes termos (transcrição integral): “A Liberdade de consciência, de religião e de culto figura na
Constituição como desenvolvimento da liberdade de praticar ou não praticar uma
religião. Neste aspecto, o anteprojecto consagra o princípio da protecção aos
locais de culto e o direito a objecção de consciência (artigo 53). (Há quem
discorde do direito a objecção de consciência, direito que leva a substituição
do cumprimento do serviço militar obrigatório por serviço cívico).”
[6] No seu relatório de
pesquisa, intitulado Juventude e Serviço
Militar, de Março de 2012, pág. 14, disponível em http://www.osisa.org/sites/default/files/parlamento_juvenil_-_pesquisa.pdf e acedido em 13 de
Dezembro de 2016, o Parlamento Juvenil referiu-se a incerteza jurídica nesta
matéria, nos seguintes termos: “Contudo, apesar do direito estar
consagrado na CRM, ao contrário de muitos outros países que mantém o SMO,
Moçambique não dispõe de uma entidade nacional de objecção de consciência que
reconheça o estatuto de objector e conceda publicamente a isenção ao
cumprimento do Serviço Militar. Este vazio, aliado aos condicionalismos da lei
do Serviço Militar para o acesso aos serviços do Estado, pode propiciar a
corrupção, discriminação e divisão social pois quem tem meios “compra” o
adiamento/dispensa e quem não tem “cumpre”.”
[7] Ratificado pela Assembleia da República,
através da Resolução n.º 5/91, de 12 de Dezembro.