As normas constitucionais ocupam uma
posição de supremacia em relação a todas outras normas
legais. Assim, sempre que estas não se conformam com aquelas, está-se em
presença do vício da inconstitucionalidade. Neste artigo far-se-á uma breve
reflexão sobre esta matéria.
Dr. José Manuel Caldeira
Advogado
I. ABORDAGEM GERAL
A doutrina distingue entre vícios
formais e vícios materiais. São vícios formais aqueles que incidem sobre o acto
normativo em si, independentemente do seu conteúdo, mas atendendo apenas ao
processo seguido para a sua expressão externa. Está-se em presença destes
quando os procedimentos adoptados para a elaboração de um acto se chocam com a
Constituição. São vícios materiais aqueles que dizem respeito ao conteúdo do
acto, quando este conteúdo é contrário à chamada Lei-Mãe.
Há autores que defendem que em
matéria constitucional, se pode distinguir entre a inexistência relativamente aos actos para os quais faltem os
requisitos considerados essenciais pela Constituição, e nulidade ipso jure no
que respeita aos actos que contradigam formal ou substancialmente a
Constituição, quando essa contradição não resulte da falta de um requisito
próprio da existência do acto. Sem
entrar na discussão doutrinária profunda sobre a matéria, pode dizer-se que a
consequência necessária da inconstitucionalidade das leis é a nulidade
absoluta, pois é princípio fundamental na maioria das legislações, incluindo a
moçambicana, a prevalência das normas hierarquicamente superiores sobre as
inferiores.
A regra geral estabelecida no nº 1
do artigo 66 da Lei nº 6/2006 de 2 de Agosto (Lei Orgânica do Conselho
constitucional) é que a declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade
produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou
ilegal e determina a repristinação das normas revogadas. Contudo, uma excepção
importante é a do nº 4 deste dispositivo legal que permite que o Conselho
Constitucional fixe aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou
ilegalidade alcance mais restritivo, desde que assim o exijam a segurança
jurídica, razões de equidade ou de interesse público. Esta prerrogativa foi
usada pelo Conselho Constitucional no caso CCLJ que adiante se descreve.
A inconstitucionalidade pode também
dividir-se em inconstitucionalidade por acção, quando se pratica um acto
contrário à Constituição e por omissão, quando o poder político deixa de pôr em
vigor uma norma exigida por aquela.
A inconstitucionalidade pode ser
total ou parcial, originária (quando a norma é oposta à Constituição vigente),
ou superveniente, quando o acto normativo era constitucional, mas a alteração
da Constituição tornou aquela incompatível com esta.
No que respeita aos sistemas de controlo
da constitucionalidade, normalmente há referência ao controlo judicial, quando
é feito pelo judiciário, controlo político e controlo misto. O sistema
moçambicano aproxima-se do controle judiciário.
Nos sistemas de controlo judiciário
distinguem-se o controle difuso, em que vários órgãos realizam esse controlo e
o controlo concentrado, em que um ou poucos órgãos têm competências relativas à
constitucionalidade dos actos. Moçambique segue o modelo do controlo
concentrado.
Quanto ao momento de controlo, este
pode ser preventivo, quando se pretende evitar que determinada norma
inconstitucional entre para o ordenamento jurídico, e repressivo, quando se
pretende verificar se uma norma, já em vigor, está ou não de acordo com a Constituição.
II.
CONSELHO CONSTITUCIONAL
De acordo com a Constituição da
Republica de Moçambique (CRM), o Conselho Constitucional tem como competências,
entre outras, apreciar e declarar, com força obrigatória geral, a
inconstitucionalidade das leis e a ilegalidade dos actos normativos dos órgãos
do Estado.
O º 2 do artigo 245 da CRM
estabelece quem pode solicitar a declaração de inconstitucionalidade das leis e
ilegalidade dos actos normativos dos órgãos do Estado, permitindo-o, entre
outros, a dois mil cidadãos.
Seguem alguns exemplos de apreciação
de inconstitucionalidade e ilegalidade, trazendo um caso em que foi negado
provimento ao pedido de declaração de inconstitucionalidade, outro em que esse
pedido foi aceite, e um terceiro em que foi reconhecido haver ilegalidade, mas
não inconstitucionalidade.
- Caso
1 Adopção do Metical da Nova Família
Um grupo de deputados da
Assembleia da República requereu ao Conselho Constitucional a declaração de
inconstitucionalidade formal da Lei nº 7/2005 de 20 de Dezembro, que adoptou o
metical da nova família, através da redução de três dígitos ao Metical.
Apresentaram como fundamentos principais:
a) A redução dos 3 dígitos
feita ao Metical é uma verdadeira alteração da moeda, nos termos expressos no
nº 2 do artigo 300 da CRM.
b)
A aprovação dessa Lei
foi feita por apenas 154 deputados e não por 2/3 dos deputados da Assembleia da
República, como, em sua opinião, exigem as disposições combinadas do nº 2 do
artigo 300 e nº 1 do artigo 295 da CRM.
O
Conselho Constitucional, através do Acórdão nº 1/CC/2006 de 1 de Junho, decidiu
não dar provimento ao pedido de declaração de inconstitucionalidade, por ter
considerado:
a)
Que das três funções
tradicionalmente atribuídas à moeda (meio de pagamento, unidade de conta e
reserva de valor), é apenas sobre a função de conta ou medida de valor que
versa a Lei nº 7/2005.
b)
Que a redução de três
dígitos e a designação transitória de Metical da Nova Família não implicam a
criação de uma moeda com nova designação.
- Caso
2 Criação do Conselho de Coordenação da
Legalidade e Justiça (CCLJ)
Um grupo de deputados da Assembleia da República requereu
ao Conselho Constitucional a declaração da inconstitucionalidade do Decreto Presidencial
nº 25/2005 de 27 de Abril, que cria o CCLJ.
Apresentaram como fundamentos principais:
a)
Compõem o CCLJ o
Presidente do Tribunal Supremo, que preside ao órgão e tem como Vice-Presidente
o Ministro da Justiça, o Presidente do Tribunal Administrativo, o
Procurador-Geral da República e o Ministro do Interior, o que afecta a
independência do judiciário e do Ministério Público, violando o princípio da
separação e interdependência de poderes fixado no artigo 134 da CRM
b)
Há uma violação do nº 3
do artigo 212 da CRM que estabelece que só por Lei podem ser definidos
mecanismos institucionais e processuais de articulação.
c)
A competência atribuída
ao CCLJ de avaliar o estado do cumprimento da legalidade viola os artigos 212,
236 e nº 3 do 239 da CRM.
O
Conselho Constitucional, pelo Acórdão nº 05/CC/2007, declarou a
inconstitucionalidade do Decreto Presidencial nº 25/2005 que criou o CCLJ,
considerando, basicamente, que:
a)
O artigo 146 da CRM não
define competências do Presidente da República, mas o seu Estatuto.
b)
A institucionalização,
por Decreto Presidencial, de um CCLJ, em que estão representados a função judicial
e executiva, contraria o princípio da separação de poderes e regras de
incompatibilidades estabelecidas da CRM.
Com
fundamento no nº 4 do artigo 66 da Lei nº 6/2006, o Conselho Constitucional
decidiu que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade só se produziriam
a partir da data da publicação oficial do Acórdão.
- Caso
3. Regulamento das Empresas de Segurança Privada (Decreto nº 9/2007 de 30 de
Abril).
Um
grupo de deputados da Assembleia da República e 2000 cidadãos requereram a
declaração de inconstitucionalidade de Decreto nº 9/2007 que aprova o
Regulamento das Empresas de Segurança Privada (o “Regulamento”). Pretende-se a
declaração de inconstitucionalidade de vários dispositivos deste Regulamento,
mas no caso presente iremos apenas referir-nos ao que respeita à contratação de
cidadãos estrangeiros para o exercício de funções de administração e gerência.
Alegaram
os peticionários que o Regulamento estabelece requisitos específicos a atender
na contratação de cidadãos para o exercício de funções de administração e gerência
nas empresas de segurança privada e que, de entre estes, o previsto na alínea
a) do n.º 1 do artigo 5.º, nos termos do qual a nomeação para os referidos
cargos deve recair sobre indivíduos de nacionalidade moçambicana, é
inconstitucional por violar, entre outros, o artigo 108 da CRM que protege o
investimento estrangeiro.
O Acórdão
n.º 5/CC/2008, de 8 Maio do CC, apreciou a constitucionalidade e a legalidade
de algumas disposições do Decreto 9/2007, de entre as quais a da alínea a) do
artigo 5.
O Acórdão
considerou a referida alínea a) do n.º 5 do Decreto 9/2007 formalmente ilegal,
porquanto introduz limites ao âmbito de aplicação de disposições legais, assim
como restrições aos direitos dos estrangeiros por via de um Decreto do Conselho
de Ministros, enquanto se trata de matéria da competência da Assembleia da
República.
Com
efeito, a alínea a) do artigo 5 do Decreto 9/2007 introduziu restrições à regra
geral prevista no Decreto-Lei n.º 2/2005, de 27 de Dezembro (que aprovou o Código
Comercial), cuja alínea d) do n.º 1 do artigo 104.º estabelece que o sócio tem
o direito de ser designado para os órgãos de administração da respectiva
sociedade. Por outro lado, introduziu uma excepção ao princípio geral de
equiparação dos cidadãos estrangeiros aos cidadãos nacionais, quanto aos direitos,
deveres e garantias, previsto no n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 5/93 de 28 de
Dezembro. Num e noutro caso, as excepções foram introduzidas por via de um Decreto
do Conselho de Ministros, extravasando assim a competência regulamentar do
Governo.
Esta
conclusão do CC é, igualmente, defendida pela doutrina de referência nesta
matéria, a qual ensina que uma norma legislativa nova, substitutiva,
modificativa ou revogatória de outra, deve ter uma hierarquia normativa, no
mínimo, igual à norma que se pretende alterar, revogar, modificar ou substituir,
nisto consistindo o princípio do congelamento do grau hierárquico, conforme
explanado no Acórdão.
Se em
relação a uma norma declarada inconstitucional, a consequência clara é a
nulidade da mesma, é importante determinar quais as consequências a atribuir a
um acto administrativo, por exemplo, a proibição de contratação de estrangeiros
para cargos de administração e gerência, fundado numa norma declarada
formalmente ilegal. Nos termos do artigo 248.º da Constituição da República de
Moçambique, sob a epígrafe irrecorribilidade
e obrigatoriedade dos acórdãos, os acórdãos do CC são de cumprimento
obrigatório para todos os cidadãos, instituições e demais pessoas jurídicas e
prevalecem sobre outras decisões. Mais ainda, a CRM estabelece que os órgãos da
Administração Pública obedecem à Constituição e à lei. Tal implica que a
Administração Pública está obrigada a conformar os seus actos à lei e ao Direito,
não podendo aplicar quaisquer actos ou decisões administrativos fundados em
normas que, de alguma forma, não se conformem com a lei, independentemente de
tal inconformidade respeitar a questões de mérito ou de formalidade.
Acresce que, adicionalmente ao ditame Constitucional
referido, os órgãos da Administração Pública estão, no exercício das suas
funções, particularmente obrigados a guiar-se pelo princípio da legalidade
administrativa, segundo preceitua o artigo 4.º do Decreto n.º 30/2001, de 15 de
Outubro, que aprova as Normas de Funcionamento dos Serviços da Administração
Pública.
Como
ensina a doutrina, a legalidade de um acto administrativo depende da
verificação dos pressupostos objectivos estabelecidos na lei, cuja ausência
determina o vício de violação da lei e a consequente invalidade do acto. A validade do acto
administrativo consiste na
sua aptidão intrínseca para produzir os efeitos jurídicos como consequência da
sua conformidade com o direito, donde se conclui que um acto inválido não reúne
os requisitos para produzir quaisquer efeitos jurídicos.